Achava tolice depois de tudo que já tinha se passado com ele, mas não conseguia evitar. Suspirou e entrou na antiga padaria, tão conhecida das manhãs de sábado. Ele esperava que o lugar fosse parecer diferente, distorcido - como ele próprio. A padaria, recém-pintada, com novos funcionários uniformizados, ainda parecia o mesmo lugar, de alguma forma. O mesmo cheiro de pão novo, a mesma rachadura circulando a grande lâmpada central.
Daniel estava sentado diante do balcão, com duas garrafas vazias de Coca-Cola diante dele e uma em suas mãos. Ele saudou André com a garrafa e o mais novo se sentou no banco ao lado.
- Você não mudou nada. - disse André ao se sentar, pesar de Daniel ter abandonado o cavanhaque e usar o cabelo um pouco mais curto. Sua aura continuava a mesma e André se acostumara a ver as pessoas assim.
- Não posso dizer o mesmo de você. - respondeu o ex-vocalista dos Ratos.
Era verdade. André crescera, como era de se esperar - regulava altura com o primo, agora. Seus olhos estavam mais escuros, sua voz mais grave, seus movimentos mais econômicos, sua postura mais alerta, sua pele mais queimada do sol. Vestido em uma calça de brim preta e uma camiseta cinza, parecia outra pessoa. Ele mesmo pensava concordava com o comentário, fazendo raciocínio similar quando se lembrava das cicatrizes novas - físicas e emocionais.
Um silêncio desconfortável se instalou. André mantia um sorriso bobo de fã diante do primo que - percebia agora - ainda era seu ídolo. Daniel bebia a Coca-Cola em goles pequenos, sem dar muita atenção ao resto do mundo.
- Então, - começou André, a voz saindo errada. - o que tem feito?
- O mesmo de sempre. Você?
Daniel mentia, embora sem saber. Os Ratos haviam se separado, ele não namorava mais Melissa, não trabalhava mais na loja de discos, havia vendido o carro. Para ele, porém, a vida continuava igual. Nada lhe parecia ter mudado. A falta desse conhecimento causou em André forte inveja. Ele sentia falta dos velhos tempos, da tranquilidade e - por que não? - inocência de sua juventude. Sentiu vontade de contar ao primo tudo que havia feito nos últimos anos, mas sabia que não devia. Escolheu contar parte da verdade.
- Faço uma tradução aqui ou ali. De vez em quando fico de intérprete. Tenho viajado bastante. Freelance, sempre.
- Que foda, cara. - Daniel disse, faltando ênfase nas palavras. - Muito foda mesmo. Tá curtindo?
- É... às vezes. Sei lá. - Dúvida. - Sinto... sinto falta dos velhos tempos.
- Você cresceu, cara. Você cresceu. É só isso. - Daniel deu um tapa camarada no ombro do primo.
- Mas sabe... às vezes eu não me reconheço. As coisas que eu faço, que eu tive que fazer... eu não me sinto mais a mesma pessoa. Me olho no espelho e penso... 'quem é esse cara?', sabe?
- Não, cara... não sei não. Mas se liga. Tu passou dessa fase, tu cresceu mesmo. Evoluiu, sei lá. Não tem que se sentir esquisito, porra. - ele ia acender um cigarro, mas desistiu.
- Se isso é evolução, Darwin é um babaca.
Riram os dois. Daniel riu de verdade. André riu por hábito.
- E a Melissa? - perguntou André.
- Se mandou. - Daniel deu de ombros. - Se mandou. Faz uns meses já... um ano talvez. Coisa assim. - Diante dos olhos arregalados do primo, adicionou. - Essas coisas acontecem. Você vai ver.
André sorriu, duvidando entrar em um relacionamento tão cedo.
- Você trouxe o que eu pedi? - o primo mais novo mudou de assunto rapidamente.
- Trouxe. - Daniel tirou uma foto do bolso e entregou para o primo. - Por que isso é tão importante?
André olhou a foto velha de um ensaio dos Ratos. Todos os velhos amigos enfiados no estúdio bolorento, cabelos grandes desgrenhados, camisetas pretas.
- É importante. Pode crer, é importante.
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