segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Epílogo

Parado diante da fachada recém-pintada da padaria, André tentava impedir que sua mente fosse inundada de pensamentos, sem muito sucesso. Os últimos anos haviam redefinido sua vida, alterado seus conceito e ele quase não conseguia se reconhecer, de quando em vez. Era tão estranho assim esperar que ele se lembrasse das coisas como eram, que o encontraria sentado diante do balcão como se não houvessem passado anos e sim dias? André se sentia tolo, inadequado, apertado dentro de suas roupas escuras. Sentiu um pouco de medo.

Achava tolice depois de tudo que já tinha se passado com ele, mas não conseguia evitar. Suspirou e entrou na antiga padaria, tão conhecida das manhãs de sábado. Ele esperava que o lugar fosse parecer diferente, distorcido - como ele próprio. A padaria, recém-pintada, com novos funcionários uniformizados, ainda parecia o mesmo lugar, de alguma forma. O mesmo cheiro de pão novo, a mesma rachadura circulando a grande lâmpada central.

Daniel estava sentado diante do balcão, com duas garrafas vazias de Coca-Cola diante dele e uma em suas mãos. Ele saudou André com a garrafa e o mais novo se sentou no banco ao lado.

- Você não mudou nada. - disse André ao se sentar, pesar de Daniel ter abandonado o cavanhaque e usar o cabelo um pouco mais curto. Sua aura continuava a mesma e André se acostumara a ver as pessoas assim.

- Não posso dizer o mesmo de você. - respondeu o ex-vocalista dos Ratos.

Era verdade. André crescera, como era de se esperar - regulava altura com o primo, agora. Seus olhos estavam mais escuros, sua voz mais grave, seus movimentos mais econômicos, sua postura mais alerta, sua pele mais queimada do sol. Vestido em uma calça de brim preta e uma camiseta cinza, parecia outra pessoa. Ele mesmo pensava concordava com o comentário, fazendo raciocínio similar quando se lembrava das cicatrizes novas - físicas e emocionais.

Um silêncio desconfortável se instalou. André mantia um sorriso bobo de fã diante do primo que - percebia agora - ainda era seu ídolo. Daniel bebia a Coca-Cola em goles pequenos, sem dar muita atenção ao resto do mundo.

- Então, - começou André, a voz saindo errada. - o que tem feito?

- O mesmo de sempre. Você?

Daniel mentia, embora sem saber. Os Ratos haviam se separado, ele não namorava mais Melissa, não trabalhava mais na loja de discos, havia vendido o carro. Para ele, porém, a vida continuava igual. Nada lhe parecia ter mudado. A falta desse conhecimento causou em André forte inveja. Ele sentia falta dos velhos tempos, da tranquilidade e - por que não? - inocência de sua juventude. Sentiu vontade de contar ao primo tudo que havia feito nos últimos anos, mas sabia que não devia. Escolheu contar parte da verdade.

- Faço uma tradução aqui ou ali. De vez em quando fico de intérprete. Tenho viajado bastante. Freelance, sempre.

- Que foda, cara. - Daniel disse, faltando ênfase nas palavras. - Muito foda mesmo. Tá curtindo?

- É... às vezes. Sei lá. - Dúvida. - Sinto... sinto falta dos velhos tempos.

- Você cresceu, cara. Você cresceu. É só isso. - Daniel deu um tapa camarada no ombro do primo.

- Mas sabe... às vezes eu não me reconheço. As coisas que eu faço, que eu tive que fazer... eu não me sinto mais a mesma pessoa. Me olho no espelho e penso... 'quem é esse cara?', sabe?

- Não, cara... não sei não. Mas se liga. Tu passou dessa fase, tu cresceu mesmo. Evoluiu, sei lá. Não tem que se sentir esquisito, porra. - ele ia acender um cigarro, mas desistiu.

- Se isso é evolução, Darwin é um babaca.

Riram os dois. Daniel riu de verdade. André riu por hábito.

- E a Melissa? - perguntou André.

- Se mandou. - Daniel deu de ombros. - Se mandou. Faz uns meses já... um ano talvez. Coisa assim. - Diante dos olhos arregalados do primo, adicionou. - Essas coisas acontecem. Você vai ver.

André sorriu, duvidando entrar em um relacionamento tão cedo.

- Você trouxe o que eu pedi? - o primo mais novo mudou de assunto rapidamente.

- Trouxe. - Daniel tirou uma foto do bolso e entregou para o primo. - Por que isso é tão importante?

André olhou a foto velha de um ensaio dos Ratos. Todos os velhos amigos enfiados no estúdio bolorento, cabelos grandes desgrenhados, camisetas pretas.

- É importante. Pode crer, é importante.

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